Completar 18 anos é um momento de euforia e ansiedade para grande parte dos jovens que sonham em alcançar sua independência, mas para aqueles que passaram sua infância em centros de acolhimento a realidade é outra. A (tão sonhada) maioridade, para esse grupo de jovens, é marcada por preocupações e inseguranças de quem, mais do que nunca, precisa caminhar com as próprias pernas.
Hoje, cerca de 47 mil crianças e adolescentes vivem em instituições de acolhimento no Brasil, segundo levantamento do Cadastro Nacional de Crianças Acolhidas do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). São meninos e meninas que estavam em situação de vulnerabilidade e foram afastados do convívio familiar, por motivos sociais, emocionais ou de integridade física. Desse número apenas 4,3 mil estão de fato disponíveis para adoção no Cadastro Nacional de Adoção (CNA)*, sendo que delas, apenas 443 têm menos de oito anos e acima dessa idade o número chega a 3,8 mil.
A reinserção à família de origem ou família extensa (tios e avós, por exemplo) é sempre a primeira opção, na impossibilidade, é feito o encaminhamento à adoção, o que nem sempre é possível.
De acordo com o CNA, há 46 mil famílias pretendentes cadastradas, como esse número é muito maior do que o de crianças disponíveis para adoção, seria de se esperar que todas essas crianças tivessem um lar, porém a realidade é outra. As famílias que se encontram na fila de adoção tem suas preferências: 10,4% aceitam apenas crianças com até um ano de idade, enquanto as que aceitam crianças até 7 anos de idade o número cai para 6%. Conforme mais perto dos 17 anos menor é a procura por parte das famílias.
O perfil desejado, que é tão restrito, faz com que o tempo de espera por uma família adotiva seja longo e muitas delas acabam vivendo até seus 18 anos nos abrigos, quando são obrigados a deixar a instituição e ir atrás da sua independência.
Foi o caso do Ulisses, hoje com 42 anos, que morou até os 13 no Lar do Caminho, e depois foi para uma república onde ficou até completar 18 anos. Hoje, as repúblicas, uma modalidade do serviço de acolhimento que oferece apoio e moradia subsidiada, é destinada a jovens com idade de 18 a 21 anos em situação de vulnerabilidade, física, emocional e social, com vínculos familiares rompidos ou fragilizados, em processo de desligamento de instituições de acolhimento, que não tenham possibilidade de retorno à família de origem ou de colocação em família substituta e que não possuam meios para auto-sustentação.
“Eu sabia que as tias não eram meus pais, até porque não davam amor e carinho, mas era uma proteção que a gente perde quando saí de lá… você perde sua película protetora e se vê sem norte” comenta Ulisses. O planejamento prévio para o desligamento dos jovens que completam a maioridade civil e são obrigados a deixar o lar é previsto na lei e é um encargo das instituições, que dificilmente conseguem preparará-los verdadeiramente para embarcar na vida adulta e encarar o mundo lá fora: “Você não sabia que o mundo era mal, porque o mundo é mal. Costumo dizer que o tapa da vida é muito mais pesado que tomar um tapa dos seus pais. E é difícil levantar” completa.
Em maio deste ano, o senador Paulo Paim apresentou um projeto de lei (PL 2528) com iniciativas para apoiar o acesso ao mercado de trabalho dos adolescentes e jovens de instituições de acolhimento. Como não têm quem os apoie o trabalho se torna a única opção, mas arranjar um emprego não é tão fácil. Pesquisas mostram que quanto mais tempo se vive em um centro de acolhimento menor é o desenvolvimento dessas crianças, aumentando ainda mais a distorção idade-série.
Ao ir para a república Ulisses conseguiu um emprego de entregador com a ajuda de um contato da instituição que na época liderava uma grande empresa de cosméticos, e destaca a importância de ter quem acredite e apoie você, afinal o caminho, quem percorre são eles mesmos, e às vezes o que falta é esse “empurrãozinho”. “Parece que você tem que sempre fazer duas vezes mais em tudo pra chegar em um lugar que você nem sabe onde é porque não tem um norte… corria pra chegar em lugar nenhum” conta Ulisses.
Em seguida, ele pôde iniciar uma nova etapa ao entrar na faculdade, comparando a vida com um carro em movimento: “O retrovisor é o seu passado, para onde você olha para te apoiar, mas pra onde você deve olhar mesmo é pro parabrisas, o seu futuro.” Mas nem sempre foi assim. Durante a adolescência não se conformava em alguns terem muito e outros nada, conforme foi amadurecendo entendeu que aquela só seria sua vida se ele permitisse, e sabia que não tinha vindo ao mundo para ocupar o lugar de vítima: “A sociedade o vê como um coitado e às vezes você enraiza aquilo e a torna uma verdade. É aí que você se afunda.” Muitos dos jovens que cresceram com ele acabaram tomando um rumo diferente, se envolvendo com o mundo do crime, das drogas ou engravidando precocemente. “Esses a sociedade vê como uma pessoa do mal, mas ele não vai pro crime porque acha aquilo legal mas é quem passou confiança pra ele”.
Durante o período da faculdade, os jovens que moravam com Ulisses na república se interessaram pelos estudos também, pois ele se tornou uma referência. Levar um exemplo de quem teve uma vida similar para esses adolescentes é importante não só para mostrar que é possível mas para oferecer uma palavra de conforto de quem já enfrentou o mesmo. “Você não sabe quem eu sou, mas você era tudo o que eu precisava ouvir” foi o que Ulisses escutou de uma menina atendida no Lar do Caminho em uma de suas visitas.
Ulisses é um dos jovens que veio do acolhimento institucional e teve um final feliz, mas sabemos que esse desfecho não é o mesmo para todos. É por isso que projetos como o do Jovem Aprendiz Social, desenvolvido pelo Instituto Devolver, que capacita e orienta jovens em vulnerabilidade social dando a eles oportunidade de ingressar no mercado de trabalho é tão importante.
*Dados consultados em 06/10/2020.
Fontes:
https://www.cnj.jus.br/cnanovo/pages/publico/index.jsf
0pt;”>https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/141885