A chave para a cultura de doação no Brasil é a transparência e experiência do doador.

Muito se fala sobre o brasileiro ser ou não solidário ou sobre como o Brasil é um país que doa pouco comparado a outros países. O momento que vivemos coloca a importância do terceiro setor em evidência, mas qual o papel das Organizações da Sociedade Civil (OSCs) no avanço da cultura de doação em nosso país.

Hoje, a nossa presidente voluntária Natalie Bennett Pinto Melare traz uma reflexão sobre o impacto da transparência e prestação de contas na cultura de doação do Brasil. Vale a pena tirar 5 minutinhos da sua quinta-feira para refletir junto conosco:

*Por Natalie Melaré

Entre tantas outras opiniões, sugestões e “verdades”, quando perguntamos sobre a Cultura de Doação no Brasil, as respostas mais comuns são:

“Brasileiro não tem o hábito de doar”

“Cultura de doação no Brasil é muito atrasada”

“Somente quem tem dinheiro doa”

Hoje eu gostaria de compartilhar aqui porque eu, Natalie Melaré, fundadora e presidente voluntária do Instituto Devolver não tinha o hábito de doar dinheiro. Sempre doei tempo, artigos e produtos que não usava mais, mas dinheiro, não doava. Esse foi um dos maiores motivos que decidi entrar no terceiro setor e fundar o Instituto Devolver. 

Vemos hoje um movimento enorme no Brasil para engajar o brasileiro a doar. Sim, um movimento necessário, de extrema importância e que eu apoio. Apoio e também vejo que precisamos iniciar um movimento complementar sim, algo a mais. Precisamos entender os motivos que fazem com que a maioria dos brasileiros economicamente ativos ainda não estão engajados socialmente ou não se sentem confortáveis ao realizar uma doação. 

Sim, é verdade que muitos não têm tanta informação a respeito dos projetos sociais existentes no mercado. Às vezes não encontraram uma causa com a qual se identifiquem, ou, simplesmente, não têm disponibilidade financeira no momento para efetivarem uma doação. Sim, são muitos os motivos. Mas, para mim, o maior motivo que me limitava, que não me deixava concluir doações eram INSEGURANÇA. Sim, esse é um motivo que tenho certeza de que certamente muitos brasileiros se identificam. 

Basta refletir um pouco sobre tudo o que as últimas gerações já enfrentaram no país. Desconfiança política, insegurança econômica e agora insegurança com a saúde. Esse sentimento é muito presente no brasileiro e com fundamento.  Agora, vamos refletir um pouco sobre o ato da doação. Eu sempre gosto de analisar o ato de doar sob uma analogia teórica com a experiência do consumidor, uma vez que doar e comprar envolvem o mesmo ato de transferência de recursos próprios para terceiros. 

Quando decidimos comprar algo, uma blusa, por exemplo, entramos numa loja e escolhemos o modelo, a cor, provamos e temos o PODER DA DECISÃO, comprar ou não comprar. Quando decidimos comprar, levamos essa blusa para casa para usá-la em algum momento. Quando a usamos, vamos sentir satisfação ou vamos querer realizar a troca. Sempre tendo o poder da decisão e uma experiência completa como consumidor.

Vamos agora pensar juntos os passos de uma doação. Como potencial doador, acessamos um site, que pode ser indicado por um amigo, que vimos num post nas mídias sociais ou alguma organização conhecida. Decidimos que queremos doar. Hoje algumas organizações dão opções de valores, esses que serão usufruídos por elas em algum projeto, temos algumas que são intermediárias, onde elas arrecadam e repassam para organizações parceiras. Independente da qual escolhemos, precisamos refletir na nossa experiência como doador. Passamos por toda etapa de cadastro. Escolhemos o valor e/ou em algumas situações o valor e como ele será direcionado. Na compra de material escolar, comida, etc.

Finalizamos! Doamos! Recebemos um e-mail de agradecimento. E agora? Como fica a nossa experiência como consumidor? Realizamos uma “compra”, escolhemos um valor, pagamos por algo que não vamos usar. Aqui é o momento aonde, na minha opinião, o terceiro setor precisa investir, repensar e se reinventar. E agora? Eu, doador, preciso concluir o meu ciclo e aqui é onde entra aquele sentimento de INSEGURANÇA.

Eu como doadora não me sentia confortável em finalizar a minha doação após a minha primeira experiência…sabem por quê? Será que os 10 reais que eu doei chegarão realmente a uma instituição? Como que eu sei que eles realmente compraram o material escolar? Será que eles destinaram os 10 reais mesmo para a aquisição do material escolar? Ou retiveram alguma taxa para cobrir os seus custos administrativos ou remunerações?

Ok. Muitos vão responder que não se sentem assim porque conhecem quem está por trás do projeto ou conhecem alguém que já dou ou que trabalha lá. Vamos pensar de uma forma diferente. Não estou falando da empresa doadora, num fundo de investimento, que muitas vezes tem a sua própria instituição, ou doa para uma instituição de um amigo ou parceiro. Estou falando do indivíduo, que não conhece o fundador da instituição pessoalmente ou alguém que trabalha lá, que muitas vezes não dispõe de muitos recursos no final do mês, que o dinheiro é conquistado com suor e como que ele irá saber se a doação realmente está sendo usada?

Sim, estamos refletindo sobre esse indivíduo. Esse que é inseguro e que precisa da experiência do consumidor. Sim. Esse mesmo.

Sabe o que ele precisa? De TRANSPARÊNCIA.

Infelizmente, essa real transparência, onde temos toda a informação da nossa “compra” as organizações do terceiro setor ainda não compartilham. Esse é o movimento ao qual me refiro. O movimento da transparência, o movimento que precisa ser feito dentro das instituições antes ou até em conjunto ao movimento em favor da cultura da doação.

Se o terceiro setor não perceber a importância da transparência, da prestação de contas e de compartilhar informação ao nosso “consumidor” para que ele consiga ter a sua “satisfação de compra” não vamos alcançar uma conscientização em nível nacional que gostaríamos de ter.

Obviamente, que cada instituição do terceiro setor tem a sua forma de compartilhar informações com seus doadores, mas o meu ponto é que precisam sempre levar em consideração o ângulo do doador sem vínculo pessoal ou de confiança com a instituição. Quando ele(a) acessar o seu site, página no Facebook e/ou perfil no Instagram, ele(a) tem acesso a todas as informações que precisa para conhecer e se identificar com a sua instituição? Há informações suficientes sobre quem está por trás da sua inciativa? Sobre sua equipe? Sobre sua governança? Essas informações precisam estar claras e de fácil acesso.

Agora vou entrar no detalhe da doação em si. A Instituição deixa claro, desde a sua primeira interação, sobre como o dinheiro doado será utilizado? Por exemplo, doei R$10,00, qual o percentual será retido para remuneração da Instituição e/ou pagamento de custos, essa informação está visível, clara?

Seu doador recebe o feedback necessário após a doação? Ele sabe se a doação dele foi usada? Como? Foi repassada? Quando?

A minha visão é que ele(a) precisa ter uma experiência positiva como “consumidor social”. E-mail, WhatsApp, mídias sociais, são apenas algumas das várias formas de compartilhar o nosso trabalho social.

A experiência me comprova que um doador plenamente satisfeito com sua experiência vai se tornar “embaixador” da causa e ajudar na divulgação e claro, ajudar com a conscientização da cultura de doação. A resposta para essas minhas perguntas acima são exemplos fáceis e práticos de algo que toda instituição no terceiro setor deveria conseguir implementar.

Levando tudo isso em consideração e adicionando ao momento único de solidariedade comunitária que estamos passando, nós, do terceiro setor, temos uma oportunidade única, uma chance especial de mostrar a nossa importância para a sociedade brasileira e de criar um relacionamento duradouro com os doadores potenciais, um verdadeiro lifestyle. Aqui entra a experiência “pós-compra” e como a instituição se relaciona com o doador antes, durante e após receber a sua doação. Um doador com experiências positivas, transparentes e que se sente envolvido na causa social e responsável pelos impactos positivos dos projetos sociais, irá certamente se tornar um “embaixador social”/ “influenciador” e se manterá engajado de forma recorrente.

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